segunda-feira, 21 de junho de 2010

Carta de despedida

Um litro e meio de café forte, amargo, esquecidos no bule por puro descaso causado pelos fatos. A garrafa térmica ficou sobre a mesa, ansiosa, desamparada, classificou-se inútil quando tudo o que podia fazer era observar o líquido que tanto esperava ser despejado esfriar estático, vítima das intempéries comuns ao mundo, que o fazem ser fascinante da forma que é.

Novamente por descaso, o café, que já não bastasse estar sendo requentado, foi esquecido no bule até gerar pressão suficiente para fugir de seu recipiente, gerar caos, sujeira, confusão, gritaria.

Foi então, outra vez esquecido, cansado e frustrado. Dessa vez, diretamente de encontro à garrafa, para que não perdesse o pouco calor que ainda restava.

Mas agora, além de requentado e queimado, o café estava frio. E ao menos ele saborearia a réplica simbolizada pela repulsa de quem o tomasse, já que para se sentir melhor, faria aqueles ao seu redor pagarem.

Mas um, ainda assim tomava – porque apesar disso, era grato pelo café mantê-lo acordado – e se sentiria mal por sorver estes últimos goles e não achar que deva ter esperança por próximos.

Em memória

- Engraçado. É engraçado como só agora que não vou mais poder te ver, lembro do quanto sinto tua falta. Passo a remoer tudo o que passamos, as maluquices, os limites que tentamos alcançar, mesmo quando distantes, fazíamos alguma merda pensando no que o outro seria capaz se na mesma situação. – ele disse a si mesmo enquanto via fotos antigas, algumas amassadas, que haviam sido esquecidas em um canto qualquer. Mal lembrava-se da amiga com a qual passara quatro anos intensos, dos quais quase não lembrava, graças à abençoada amnésia alcoólica. E, que anos depois, não repetindo nada próximo daquilo mantinha-se orgulhoso de tudo o que não fazia ideia do que havia feito.

- Desculpa não avisar, não queria você preocupado. – imaginou a amiga dizer – E, acima de tudo, não queria te dar a chance de dizer "eu avisei".

- Foda-se. Estar ao seu lado nesse momento era mais importante do que qualquer disputa de egos que nós tivéssemos. Só diria "eu avisei" quando se recuperasse.

- Então vai guardar isso entalado na garganta a vida inteira?

- Isso não é hora, Lu. Eu sequer vou ser capaz de me despedir, queria ao menos poder fazer isso. – lágrimas teimavam em encontrar seu caminho.

- Pensa comigo, cabeça: Ia basicamente largar o trabalho pelo qual só não deu seu fígado porque ele ainda não tava inteiro o suficiente e, também, ia me ver aos pedaços. A bunda da qual tanto gostava não ia ter nem sinal do que já chegou a ser. Convenhamos, seria broxante.

- Não interessa, é minha amiga, eu sempre insisti pra que largasse essa porra de cigarro, mas nunca parou. Eu tinha o direito de saber que isso tava te matando. – uma vontade súbita de abraçar o tomou, o desejo de adeus tornou-se físico.

- E eu tinha o direito de não te dizer nada e deixar com que seguisse sua vida. – ele sentiu a vontade dela, por mais esquizofrênica que fosse, de retribuir.

- O problema é que isso sequer pode ser considerado uma despedida. Não te vejo e não nos falamos há mais de um ano, certeza que por causa da doença.

- E não fazendo mais parte da minha vida, deveria não fazer parte de minha morte.

- Não é assim que funciona com os bons amigos.

- Não é assim que funciona nossa amizade. A viadice fica por minha conta, mesmo quando só você restou. Agora, antes que eu vá de vez, não tem nada mesmo a dizer?

- Obrigado.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Lhe guardo o que dizer

Saí de encontro à sarjeta, hoje é a única a qual pertenço, nela guardo memórias, e quando as quero, me ofereço.

Procuro sufocar a angústia, afogar o que mereço, lembrar do que foi bom, e pensar no que esqueço. Ver o futuro que havia imaginado, quando apenas pertencia à sarjeta, e seu cheiro era adocicado. Então me lembro da brisa branda, sem culpas, ou promessas. De quando não tinha nenhum peso nas costas, de quão fácil tudo era.

Logo divago sobre como quero que tudo isso volte, mas então a sarjeta me puxa, e recorda minha morte.

Então bêbado vomito nela tudo o que guardei, ela escuta calmamente, entre pausas e suporte, lembra que nada pode mudar o que fui ou o que deixei. No fim, é a única voz que realmente ouço – minha própria, na sarjeta – apenas dela posso aceitar ofensas, já que só a mim, ouço.

Ela disse que posso voltar a ser eu, ainda que em parte seu. Mas nunca devo me esquecer, que o que eu era me tornou assim, melhor inclusive nos defeitos recorrentes.

A sarjeta explicou que esse novo eu, só somaria ao antigo. E que seria ainda melhor com todos, por mais que deseje estar contigo.